Por Suelen Gregatti da Igreja
O que leva aquela que é considerada a maior artista japonesa viva a lotar salas e mais salas com a representação do objeto de seu medo?
O que fez tantos brasileiros lotarem a exposição “Obsessão infinita”, da artista japonesa Yayoi Kusama? Formaram filas e mais filas para entrar no Instituto Tomie Othake só para ver, ad nauseam, ora os formatos redondos, ora os penianos, ora os penianos decorados com os redondos? Complicado entender o que une tanta gente – de tantas tribos diversas – na coletânea de produções da artista, feitas entre 1949 e 2012 (quadros, esculturas, vídeos e instalações), disponível ao público entre 22 de maio a 27 de junho, em São Paulo.
Mais complicado, ainda, vislumbrar a motivação da artista. Em busca de uma pista, lemos a declaração da própria Yayoi Kusama. Para ela, tanto o formato do pênis humano quanto a sua função de penetração no corpo da mulher foram fonte de medo e se tornaram uma obsessão autodeclarada. Não fosse nosso estudo prévio de Freud, essa afirmação se tornaria completamente opaca. O que leva aquela que é considerada a maior artista japonesa viva a lotar salas e mais salas com a representação do objeto de seu medo? Não seria mais condizente com o senso comum que ela fugisse dele?
Para responder, remontamos a 1914, quando Sigmund Freud publicou Recordar, repetir e elaborar. Primeiramente, o psicanalista apresentou diferentes causas que nos levariam a esquecer determinados acontecimentos de nossas vidas, desde aqueles que ocorreram na infância, até aqueles que ocorreram num tempo recente. Para Freud, esses esquecimentos não ficariam perdidos, pois retornariam na forma de lembranças a serem elaboradas.
Então, Freud passou a tratar de fatos que não podem ser lembrados por nunca terem sido propriamente esquecidos. Um de seus exemplos é o “esquecimento” de algo que foi vivenciado em um momento no qual sequer conseguíamos compreender o que estava acontecendo ao nosso redor. Ao curso de uma análise, esses fatos não podem ser lembrados, mas, sim, aparecem, como ação, na vida da pessoa: trata-se do repetir. A repetição do mesmo é uma estratégia comum do neurótico. Ele crê que, ao executá-la, vai conseguir encontrar um modo de compreender o incompreensível. Como isso não ocorre, sofre. “- Não acredito que fiz isso de novo! ”, diz, assustado.
Yayoi Kusama poderia ter encontrado seu modo de repetir na diferença. Ela sabia que, ao esculpir seus medos, estava, reiteradamente, tentando dar uma imagem ao seu horror frente à falta de significação sexual. Reproduziu os pênis de que tinha medo e, desde a década de 70, internou-se numa casa de repouso. Foi só muito mais tarde que, ao libertar-se de suas obsessões, a artista pôde pintar outras coisas.
Aprendamos com sua lição. Se a psicanálise foi fundada por Freud em resposta aos horrores das mulheres – histéricas – que tinham dificuldades para lidar com o desejo, isso nos faz ver que o medo de Yayoi Kusama não é exclusivo dela. O que ela fez, talvez, foi dar corpo ao objeto fóbico de muitas mocinhas virgens e mulheres inconformadas. Referimo-nos aqui às mulheres descritas no Tabu da virgindade, de Freud (1918 [1917]). As primeiras, são apontadas por ele como aquelas que descarregariam sua sexualidade imatura no primeiro homem com que teve relações sexuais; já as segundas são aquelas que, ao serem penetradas pelo pênis, reagem de maneira “fria e insatisfeita” (p. 208).
Sejamos todos gratos a Yayoi Kusama. Se as moças puderem comparecer à exposição, talvez sintam um profundo alívio, do tipo descrito por Freud ao aludir ao trabalho de escritores criativos. O horror, e até a repulsa, que elas podem vir a sentir ao ver tantos pênis pela frente pode servir, ao menos, para que se apoderem de seu corpo próprio.
Buscar modos para assumir o próprio desejo, para sustentá-lo e para se responsabilizar por ele com certeza dá muito trabalho. Pode ser um caminho mais interessante do que a repetição do mesmo. Afinal, para que sustentar um terror imaginário que paralisa sua vida?
Suelen Gregatti da Igreja é professora de língua portuguesa e doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo.