Por Marcelo Veras
Enquanto a psicologia aspira cada vez mais a se tornar uma ciência médica e fazer par com a neurociência, a psicanálise tomou o caminho de se tornar uma disciplina clínica que apresente um corpus teórico próprio
Gostaria de continuar um debate que se estende pelos corredores das instituições de psicanálise sobre a pertinência da aproximação entre a psicanálise e a universidade. Houve um tempo em que os psicanalistas – puros e duros – se afastavam do discurso universitário. A formação do analista se fazia nos consultórios e no âmbito das supervisões e instituições psicanalíticas. A meu ver, parte da crítica vem do processo histórico ligado à fundação mesma da psicanálise. Desconheço um psicanalista da minha geração ou mais velho que não tenha, em algum momento de sua formação, se identificado a Freud como um ingenioso hidalgo de Cervantes em sua luta contra a neurologia e a psiquiatria de sua época. Mais recentemente, a reatualização do impasse psicanálise versus universidade encontra, sem dúvida, um porto na Paris de 68, momento em que Lacan criticava o discurso universitário e apontava o perigo de fazer emergir, ainda mais forte, a figura do mestre que tanto se busca abater.
Ainda assim, a universidade se enamorou da psicanálise. A psiquiatria, a psicologia, as ciências humanas, todas discutiam as teses do mestre Freud e, em pleno momento de ebulição da crítica à psiquiatria asilar, mamaram nas tetas do inconsciente freudiano. Assim, foi possível construir teses e libelos que se tornaram clássicos da anti-psiquiatria. Talvez por ter nascido em uma circunstância histórica indelével, a diatribe que condenou milhões de judeus ao extermínio, a psicanálise esteve presente como suporte aos discursos contra a segregação em circunstâncias muito distintas, como os sucessivos golpes militares na América Latina nas décadas de 60 e 70, ou na luta contra as situações aviltantes dos manicômios psiquiátricos.
A situação não é mais a mesma. Assistimos paulatinamente a uma resistência ao pensamento psicanalítico em muitas universidades e faculdades assim como nas instituições de fomento à pesquisa. Algo me inquieta nesse banimento crescente da psicanálise dos cursos de psicologia e das residências de psiquiatria. Não me parece ser uma questão de contra transferência a Freud ou Lacan, ou mesmo a Jung ou Klein, não faço parte dos psicanalistas que se sentem vítimas perseguidas. Parece-me mais, que tanto a psiquiatria quanto a psicologia, e mesmo a psicanálise, todas muito recentes, tomaram rumos diferentes na busca pela secularização. Enquanto uma parte cada vez mais crescente da psiquiatria e da psicologia desenvolveu uma verdadeira aversão à subjetividade, buscando critérios que eliminem o sujeito e reforcem a cientificidade pautada no caráter orgânico dos comportamentos, a psicanálise buscou sua secularização na investigação do mal-estar instaurado pela inadequação da linguagem ao corpo biológico.
Um fato ocorrido há alguns anos é fortemente indicativo dos destinos e escolhas destas disciplinas. Na Universidade Federal da Bahia, apesar da resistência de muitos psiquiatras da velha geração, o Departamento de Neurologia e Psiquiatria passou a se chamar Departamento de Saúde Mental e Neurociências.
Que a psiquiatria tenha sua aspiração a ser uma ciência médica não me causa nenhuma surpresa. Como vimos nesse caso, o preço que ela pagou para se tornar medicina foi seu próprio desaparecimento. Muito breve a psiquiatria será sinônimo de neurociência partout. Ou seja, ela não se secularizou como disciplina autônoma e como uma modalidade específica do pensamento médico.
O caminho mais recente da psicologia em diversas universidades é que me parece uma perda para o jovem estudante de psicologia. Em um número crescente de instituições, somente as disciplinas que convergem para uma pesquisa de resultados quantitativos são validadas como científicas e merecedoras de espaço no ambiente universitário. Ouvi de um colega professor de Psicologia, com sólida formação em terapia cognitivo—comportamental em Universidades estrangeiras, alguém que aprecio pela inteligência e vivacidade, que a psicanálise não sobreviveria no século XXI por não ter base alguma científica e estar despreparada para viver no mundo das agências de fomento. Tentei apontar-lhe que, ao seguir os mesmos caminhos da medicina, haveria um empobrecimento dialético na formação dos futuros psicólogos. A tensão e inquietação do pensamento psicanalítico nos cursos de psicologia é fundamental para manter viva a transmissão de uma clínica que não se atenha a questionários. Uma coisa é o psicólogo aplicar questionários em uma instituição que se apoia complementarmente na psiquiatria, outra coisa é o psicólogo estar só, exercendo sua clínica em um consultório. O que percebo é que esse psicólogo que formou-se completamente despreparado para as tensões subjetivas que o exercício da clínica sem questionários, sem procedimento padrão, acaba indicando muito mais, diante de sua incapacidade clínica, a necessidade de complemento farmacológico prescrito por um psiquiatra.
Enquanto a psicologia aspira cada vez mais a se tornar uma ciência médica e fazer par com a neurociência, a psicanálise tomou o caminho de se tornar uma disciplina clínica que apresente um corpus teórico próprio. Não se trata de ir contra os avanços da farmacologia, mas o psicanalista, ao sustentar o exercício da clínica sem as facilidades dos diagnósticos ready made através de questionários, encaminha muito menos seus pacientes para serem medicados. Uma coisa é indicar um medicamento para aliviar a angústia do paciente, outra coisa é indicar um medicamento para aliviar a angústia do terapeuta que não sabe o que fazer quando o paciente não responde ao procedimento. E isso não sem negligenciar que para mim é óbvio que é impossível amar sem que entre sódio e saia potássio.
Marcelo Veras é diretor da Escola Brasileira de Psicanálise