Por Maralice de Souza Neves e Dorothee Rüdiger
Um e-mail ufanista nos chama à responsabilidade sobre um “país que não presta”. Afinal, quem faz o país mesmo? Por que o brasileiro se autoriza a resignação dessa maneira?
Uma ambulância causou nesta semana, no mínimo, um certo mal estar. Correndo a toda velocidade por entre os carros parados no trânsito insuportável da metrópole, foi parada pela polícia. Pelo espanto geral, a ambulância era fake, um jeitinho de um cidadão abastado de furar a fila de veículos.
Você também pensou que a estória estava se passando em São Paulo? Errou. O motorista engraçadinho era russo e a cidade parada pelo excesso de veículos era Moscou. Pois é.
Vira e mexe, circula pela internet um e-mail assinado por uma suposta escritora holandesa, que enumera razões para o brasileiro exaltar o Brasil em vez de criticá-lo. O texto começa pela seguinte frase: “Os brasileiros acham que o mundo todo presta, menos o Brasil. Realmente parece que é um vício falar mal do Brasil. Todo lugar tem seus pontos positivos e negativos, mas no exterior maximizam os positivos, enquanto no Brasil se maximizam os negativos.” Em seguida, a suposta autora aponta vários exemplos comparativos entre o que há de positivo e melhor no Brasil do que em países da Europa e da América do Norte, a começar pela própria Holanda.
Ao procurar procedência do texto, praticamente só nos deparamos com respostas de protesto e indignação a ele e a sua inexistente autora. Vemos veementes comentários do tipo “ é mentira, esse texto foi escrito pelo governo como propaganda institucional” ou “isso é desonestidade pura, pois cada um dos pontos pode ser refutado” ou, ainda, “é um texto apócrifo, sem origem nem autoria definidas; não é coisa a ser levada a sério”, etc. Chama a atenção a insistência e a intensidade com que frases como “esse país não presta” ou, ainda, “brasileiro não presta” ressoam, nos levando a concluir que, uma vez que o país não presta, o brasileiro tem de se resignar e achar que tudo de bom vem de fora.
A suposta autora holandesa nos demonstra, com seus inúmeros exemplos, que, como diz o psicanalista Jorge Forbes há algo subjetivo, além da razão, que sustenta uma sociedade. É preciso aderir voluntariamente ao gosto pelo país. Numa entrevista recente, na revista Coleção Guias da Psicanálise – Vol.2, Forbes ressalta que, no Brasil, a razão sensível ganha da razão asséptica, fazendo com que o brasileiro seja alguém que ama o inconsciente e “que sabe – quase intuitivamente – que as ações humanas não cabem em protocolos prêt-à-porter”.
O e-mail reconhece esse saber em vários de seus exemplos, como na afirmação de que o Brasil é o único país do hemisfério sul que está participando do Projeto Genoma. E podemos acrescentar que no Centro de Estudos do Genoma Humano da USP existe a clínica da desautorização do sofrimento coordenada por Jorge Forbes e pela geneticista Mayana Zatz. Essa clínica desautoriza o maktoub , o “está escrito” do mau encontro com a mensagem genética. O encontro entre uma geneticista e um psicanalista é uma resposta responsável e criativa tipicamente brasileira ao confronto com o estranho que irrompe e aliena as pessoas à posição de, por exemplo, resignação a uma doença.
Podemos pensar e inventar outros encontros dessa ordem. São necessários, pois a postura resignada diante do maktoub de um diagnóstico genético é muito semelhante ao comportamento dos cidadãos que se resignam ao país “que não presta”. Que atitude tomar diante daquilo que não está perfeito? Não estaria na hora de nós brasileiros assumirmos que os tempos, nos quais o Brasil era colônia, já se foram? Não seria o caso de reconhecer e legitimar que somos responsáveis pelo nosso destino e o dos outros no mundo contemporâneo, no qual, diga-se de passagem, não há mais nem centro, nem periferia? Como foi visto, temos a contribuir, e muito, para a vida numa sociedade humana, na qual a nacionalidade é um pormenor. E não precisamos de supostas escritoras holandesas para nos atestarem isso.