Jorge Forbes
Texto introdutório à Conversação Clínica do IPLA, dezembro de 2024.
O cenário contemporâneo apresenta um desafio que ressoa diretamente no campo ético e social: a convivência com a incompletude do laço social. Diferentemente dos últimos 28 séculos, em que predominava uma expectativa de estabilidade fundamentada em verdades seguras e universais, a pós-modernidade desvela um mundo fragmentado, onde, como afirmou Lacan, “toda verdade é mentirosa”. Essa ruptura com a segurança de verdades absolutas gerou não apenas desorientação subjetiva, mas também uma escalada de dinâmicas destrutivas no campo coletivo. O desafio para a psicanálise em 2025 será propor uma nova ética que acolha o impossível como estruturante e ofereça alternativas para conter a destrutividade que marca a polarização e a cultura do cancelamento.
O FIM DO LAÇO SOCIAL COMPLETO E O IMPACTO SUBJETIVO
Historicamente, o laço social foi sustentado por estruturas que prometiam completude: verdades religiosas, sistemas morais e políticos ou ideais científicos. Esses referenciais ofereciam um eixo de segurança para a ação humana, garantindo sentido e continuidade ao desejo. Na pós-modernidade, porém, tais estruturas ruíram. A globalização, o avanço tecnológico e a pluralidade de discursos produziram um campo simbólico fragmentado, onde as certezas deram lugar à multiplicidade e ao questionamento. Este mundo “incompleto” desafia os sujeitos a viver sem garantias estáveis, confrontando-os com o vazio e o limite do saber.
A dificuldade de lidar com essa condição de incompletude se manifesta no recrudescimento das polarizações. A cultura do cancelamento, por exemplo, é um sintoma dessa tentativa de salvar-se no confronto: eliminando o outro, acredita-se que se restaura uma verdade ou pureza perdida. Porém, essa dinâmica destrutiva revela um impasse ético: ao invés de aceitar o impossível como constitutivo do laço social, busca-se aniquilá-lo, intensificando a violência e o sofrimento coletivo.
A PSICANÁLISE E O EIXO IMPOTÊNCIA-IMPOSSÍVEL
A psicanálise, desde Freud e Lacan, sempre se posicionou diante da falta e do impossível como elementos estruturantes do sujeito e do laço social. Na clínica, o analista acolhe o sujeito em sua impotência diante do desejo e do Real, não oferecendo respostas, mas sustentando um espaço onde a falta pode ser elaborada. Esse mesmo princípio pode ser ampliado para o campo social.
O desafio é deslocar a ética contemporânea, muitas vezes ancorada na lógica “impotência-potência” – que opera pela tentativa de preencher a falta por meio de poder ou controle – para uma ética do “impotência-impossível”. Esse deslocamento implica reconhecer que não há solução final para os impasses do desejo, nem garantias absolutas para a ação. Em vez de buscar preencher o vazio com verdades precárias ou destruir o outro para garantir segurança ilusória, trata-se de sustentar o laço social na aceitação de sua incompletude.
A IMPORTÂNCIA DE RETOMAR O TERMO “TRATAMENTO” NA PSICANÁLISE
Para responder a esses desafios éticos, acredito ser conveniente retomar o termo tratamento na psicanálise, não em sua acepção restrita ao alívio de sintomas, mas em um sentido ético e estrutural. Freud, inicialmente, definiu a psicanálise como um “tratamento das neuroses”. Posteriormente, Lacan preferiu o termo experiência, destacando que a psicanálise não se limita à resolução de aspectos parciais ou sintomas específicos, mas que se abre à dimensão do “inconsciente”, ou seja, à experiência subjetiva no campo do desejo e da falta.
Hoje, proponho que possamos falar da psicanálise como um tratamento ético, um processo que visa uma mudança de posição subjetiva diante do desejo e do laço social. Esse tratamento ético opera a transição da ética da potência – centrada na ilusão de domínio sobre o outro ou sobre o Real – para a ética do impossível, que reconhece a falta e o limite como estruturantes. Assim, a psicanálise não se reduz à ideia de “cura”, mas sustenta uma transformação ética capaz de acolher o impossível como horizonte de convivência.
A AÇÃO PSICANALÍTICA SOBRE PESSOAS E INSTITUIÇÕES
A psicanálise pode desempenhar um papel fundamental na criação de espaços de reflexão e elaboração que transcendem a lógica da destrutividade. Isso implica não apenas um trabalho clínico, mas também uma atuação junto a instituições e grupos sociais, promovendo uma nova ética capaz de lidar com o diferente e o discordante sem recorrer à aniquilação simbólica ou real do outro.
As atrocidades que testemunhamos em cenários de violência, como as ações abusivas da polícia militar, ou nos linchamentos virtuais promovidos pela cultura do cancelamento, são exemplos extremos de um mecanismo que tenta apagar o impossível ao invés de aceitá-lo. Para enfrentar essas dinâmicas, é essencial esclarecer que a convivência com o outro não é uma questão de potência ou domínio, mas de reconhecimento do limite e da alteridade.
A NECESSIDADE DE UMA NOVA ÉTICA
A ética que a psicanálise propõe não é normativa, mas estrutural: ela parte do reconhecimento de que o Real é impossível de ser simbolizado e que a falta é inerente ao sujeito e ao laço social. Essa ética não busca respostas definitivas, mas sustenta a abertura ao diferente e ao novo. Ela propõe uma convivência que não elimina o conflito, mas que o acolhe como parte da condição humana.
Nesse sentido, a retomada do termo tratamento é também um posicionamento político e ético. A psicanálise oferece não apenas uma experiência de transformação subjetiva, mas um tratamento ético para a coletividade, onde a convivência com o impossível torna-se a base para um laço social mais responsável, criativo e humano.
CONCLUSÃO
O mundo pós-moderno, com seu laço social incompleto, desafia os sujeitos a abandonar a busca por verdades absolutas e a enfrentar a falta como constitutiva. A psicanálise, ao operar a partir do eixo “impotência-impossível”, oferece uma saída ética para os impasses contemporâneos, ajudando sujeitos e instituições a se posicionarem de forma menos destrutiva diante do outro e do mundo. Ao retomar o termo “tratamento” como um tratamento ético, reafirmamos a importância da psicanálise não apenas como prática clínica, mas como uma ferramenta ética fundamental para o enfrentamento das crises contemporâneas.